Compulsão alimentar e culpa andam lado a lado no cotidiano de quem sofre com a bulimia nervosa, transtorno alimentar que atinge principalmente mulheres jovens, dos 15 aos 30 anos. A genética, ambiente e cultura – como padrões de beleza estabelecidos – são os principais fatores que contribuem para a doença se desenvolver.
“Filhos de pessoas com bulimia tem até dez vezes mais chances de desenvolver o transtorno. Mas, o fator genético isolado não justifica o desenvolvimento da bulimia. Existe o fator cultural, como o culto pelo corpo, pela forma, pela beleza e como a sociedade valoriza isso”.
Um especialista afirma que houve aumento nos casos de bulimia durante a pandemia por conta de fatores de estresse, redução de socialização e mais exposição a telas, que difundem modelos e padrões de beleza de forma constante. “As redes sociais são muito ligadas à imagem. É difícil que uma pessoa jovem, em situação de isolamento, fique tão exposta a essas mídias e não faça comparações com o corpo ou queira chegar a um padrão estabelecido”.
O culto pela beleza
Diferentemente da anorexia nervosa, nem sempre é possível identificar pessoas com bulimia. “Muitas vezes, quando pensamos em transtornos alimentares, é comum imaginar pessoas extremamente emagrecidas, como o padrão da anorexia nervosa, ou com sobrepeso, padrão do transtorno compulsivo alimentar periódico. Mas, na verdade, a pessoa com bulimia parece ter o corpo dentro dos parâmetros considerados saudáveis. Inclusive, muitas vezes são consideradas bonitas e dentro de um padrão, mas ninguém imagina o que está por trás daquilo”, comenta o especialista.
A pessoa com bulimia nervosa geralmente não tem distorção da imagem corporal, transtorno que atinge pacientes com anorexia, em que a pessoa se enxerga obesa – mesmo que todos digam que ela está magra ou abaixo do peso. “Enquanto na anorexia a pessoa fica debilitada e desnutrida, na bulimia as pacientes têm um reforço positivo da beleza, pois as pessoas elogiam”. Muitas vezes, as pessoas com bulimia estão satisfeitas com o corpo e querem apenas manter o peso do jeito que está, como explica Hercílio: “existe um sentimento de que a falta de controle vai acontecer a qualquer momento, que uma refeição compulsiva vai colocar tudo a perder e isso gera um desespero que leva a pessoa a restituir os rituais purgativos”.
Como identificar a bulimia nervosa
Mais complexa do que difundida nos filmes e novelas, a bulimia nervosa não está associada apenas a vomitar depois de cada refeição: existem critérios de diagnósticos para identificar o distúrbio, como padrão alimentar, rituais purgativos e frequência. “A pessoa com bulimia nervosa tem um padrão compulsivo alimentar, com o consumo de alimentos mais calóricos num intervalo curto de tempo – cerca de duas horas – e depois desse consumo acentuado, vem a culpa”, explica o especialista.
Para atenuar a culpa, a pessoa busca por formas de eliminar o alimento o mais rápido que pode. Esse ato é chamado de ritual purgativo: quando a paciente provoca vômitos, toma medicamentos como laxantes e diuréticos ou pratica exercícios excessivamente para “queimar” todas as calorias que consumiu.
Mas, não é porque você comeu muito no fim de semana e decidiu ir para a academia na segunda-feira que está com bulimia. A frequência desses padrões é um fator decisivo no diagnóstico do distúrbio: é preciso que ocorra pelo menos uma vez por semana nos últimos três meses. Além disso, a pessoa com bulimia dá um peso muito maior para o corpo em relação aos outros setores da vida.
Complicações clínicas
De acordo com especialistas, os transtornos alimentares são aqueles que geram mais preocupações em relação a desfechos ruins dentro da psiquiatria. Isto porque os rituais purgativos podem desencadear desequilíbrios biológicos. “A doença pode, inicialmente, levar a outros problemas de saúde mais simples, como dores crônicas de garganta e no estômago, azia, refluxo gástrico, ou mais graves como ruptura do esôfago, úlceras intestinais, infertilidade, doenças cardíacas graves e desnutrição”, comenta Patricia Rondello Mariano, nutricionista do Grupo.
As complicações locais acontecem pois o ato de provocar vômitos faz com que o ácido presente no estomago passe para o esôfago e chegue à cavidade faríngica, boca e nariz. “Essa substância transita por regiões que não são preparadas para este conteúdo. Por isso, pode gerar lesões graves no esôfago, inclusive câncer, além de perda de dentes por conta da chegada do ácido à boca”, explica o médico.
Induzir a eliminação dos alimentos antes do tempo natural – seja por meio de vômitos, seja com o uso de diuréticos e laxantes – ainda pode causar a perda de eletrólitos, como sódio e potássio. “Esses íons são muito importantes para o funcionamento do sistema nervoso e do coração. Se eles são eliminados de forma frequente e não são repostos, essas pessoas podem evoluir para um quadro carencial e chega um momento que pode causar arritmias cardíacas e alterações no sistema nervoso”, explica Hercílio.
Os exercícios físicos extenuantes também podem cobrar um preço, como lesões musculares e problemas cardiovasculares, como o infarto no miocárdio.
Tratamentos
Para tratar a bulimia, é importante realizar acompanhamento com pelo menos três especialistas: psiquiatra, psicólogo e nutricionista. “Chamamos de ‘equipe mínima’, em que os profissionais especializados em distúrbios alimentares são extremamente importantes para o prognóstico. É preciso ter muita atenção, pois são pacientes que tem risco de complicações clínicas, inclusive podem levar a morte”, explica Hercílio.
Segundo o médico, não adianta ir apenas em um desses profissionais: é preciso ir em todos para que o tratamento seja eficaz. Por exemplo, o acompanhamento nutricional é importante para ajudar o paciente a repor os nutrientes e estabelecer uma outra relação com a comida. Segundo Patricia, o tipo de alimentação prescrita vai depender do estágio do transtorno alimentar e do grau de comprometimento físico, nutricional e emocional. “Com um acolhimento e abordagem adequados, o objetivo é incentivar a reeducação alimentar e estimular uma relação mais saudável e amistosa com a comida”. Além disso, em alguns casos, é necessário o uso de suplementos proteicos, vitaminas e minerais, e probióticos e prebióticos.
Já quando o assunto é psicoterapia, Hercílio indica um psicólogo especializado em distúrbios alimentares com uma abordagem voltada para o comportamento. “É importante uma terapia familiar também, pois muito frequentemente existe um contexto familiar que precisa ser tratado. Esses transtornos trazem muito sofrimento para a família”.
Tratamento com medicamentos
O psiquiatra conta que a bulimia tem uma “vizinhança psicopatológica com o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC)”. Ou seja, há uma semelhança entre os dois distúrbios, como cita: “existe a obsessão por ter comido demais e a elaboração de algum ritual purgativo como um ato compulsivo”.
Sendo assim, alguns medicamentos para TOC podem ter resultados positivos no tratamento contra a bulimia. Neste sentido, os remédios contribuem para a diminuição da obsessão pelo corpo e pelos atos compulsivos. Outros medicamentos que podem ser indicados para pacientes bulímicos são antidepressivos, como fluoxetina, imipramina e a desipramina, além de anticonvulsionantes, como o topiramato.
“Nos casos de anorexia esses medicamentos não têm tanta efetividade; já na bulimia, eles têm um papel muito forte no controle da doença”, explica Hercílio. Isso porque a distorção da imagem corporal ainda não pode ser abordada farmacologicamente.
Mas, em qualquer um dos casos, o médico reforça que é preciso ter um acompanhamento multiprofissional: “se você sofre ou conhece alguém que luta contra transtornos alimentares, é preciso buscar essa equipe mínima para ter mais sucesso no prognóstico. Somente um dos profissionais não vai ajudar no tratamento”.
Referências Fonte: Grupo NotreDame Intermédica com a colaboração do psiquiatra, Hercílio Pereira de Oliveira Junior, e da nutricionista, Patricia Rondello Mariano.
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